quinta-feira, 13 de julho de 2017

Ezequiela

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Algumas pessoas poderão torcer o nariz, arquear as sobrancelhas, fazer cara de quem viu algo muito estranho, mas sim, Ezequiela existe. Muito bem, é usado de modo muito esparso em português e espanhol, mas é usado. Então, se há uso e legitimidade, cá estamos com ele.

Como é bastante óbvio, Ezequiela é uma elaboração feminina a partir de Ezequiel, que tem origem no nome hebraico יְחֶזְקֵאל (Yechezqel ou Y'khizqel) que significa "Deus fortalece". No contexto bíblico, Ezequiel é um profeta do Antigo Testamento, o autor do livro de Ezequiel. Ele morava em Jerusalém até a conquista da Babilônia e cativeiro de Israel, momento em que ele foi levado para a Babilônia.

O livro de Ezequiel descreve suas visões simbólicas vívidas que preveem a restauração do Reino de Israel. Como um nome dado no mundo anglófono, Ezequiel tem sido usado desde a Reforma Protestante. Assim, sendo Ezequiela mantém o mesmo significado, assim como Emanuel e Emanuela, e torna-se uma opção em termos de nome bíblico, feminino, com significado potente e interessante.

No Brasil, Ezequiela é um nome extremamente raro, mas não ausente. São 87 pessoas ao todo com esse nome, em todo o Brasil, num período que compreende 80 anos de 1930 a 2010, conforme dados coletados pelo IBGE e compilados na Ferramenta virtual Nomes no Brasil, baseada no Censo 2010. Desse total, 27 foram registradas nos anos 90. E ainda, 26 delas são gaúchas.

Como não podia deixar de ser, temos 69 pessoas chamadas Ezequiele, a maioria nascida nos anos 90, e com destaque para o Paraná. Ainda, 20 pessoas sustentam a grafia Ezequieli.

Em termos de referências, tudo o que achamos foram perfis no Facebook e em outros sites de contatos profissionais. Algumas delas, contudo, são de outros países hispânicos da América do Sul. Em italiano, temos as formas femininas Ezechiela e Ezechiella, mas essas versões, escritas desse modo, não computam registros nos dados do IBGE. Para quem gosta da escrita italiana, eis uma opção.

Contudo, há que se observar que Ezechiele em italiano é um nome masculino, que pode vir com a variante Ezechiello, mas predominantemente é usado na primeira grafia.


De qualquer modo, Ezequiela me parece um nome equilibrado. A terminação em –ela, tao comum em nomes femininos, dá a sensação de familiaridade necessária para que a gente não adquira aversão imediata e automática ao nome. Contudo, essa familiaridade e docilidade não fica exagerada, de modo que logo concordamos que é um nome para não esquecer: forte, marcante e exclusivo. 

Aqui vai um texto de Mia Couto, que menciona o nome Ezequiela:


EZEQUIELA, A HUMANIDADE

Um certo moço apaixonou-se por uma moça, de cujo nome Ezequiela. O jovem se designava de Jerónimo. Foi amor de anel e altar. Em prazo fulminante ajuntaram destinos, ele e ela, os dois e ambos.

Até que certa manhã Jerónimo acordou e deparou com outra mulher em seu leito. Era uma branca, de longos cabelos loiros. Ele cismalhou: quem é esta? onde está minha mulher? E chamou:

- Ezequiela!
A moça branca despertou, assustada com o grito, e respondeu:
- Que foi, meu amor?
E ele: que meu amor, que meio amor. Afinal, quem era ela e como se explicava ali, em pleno leito de outrens?
- Mas eu sou Ezequiela. Sou a sua mulher, Jerónimo.

Ele riu-se, incapaz de tudo.
- Como, se você é branca retinta e minha mulher é negra? Como, se os cabelos…
- Se acalme, Jerónimo: eu lhe explico.

E explicou. Que ela era assim mesmo, mudava de corpo de cada vez em quando. Ora de um tamanho, ora de uma cor. E ora bela, ora feia. Actualmente, branca e posteriormente, negra. Que ela se convertia, vice-versátil.

- Você me ama, assim como sou?
- Como você é, como?
O problema sendo mesmo esse, o da identidade exacta dela mesma, a autenticada Ezequiela. E ele, pesaroso, meneou a cabeça:
- Não posso. Você não é aquela que eu casei.

Ezequiela lhe propôs então que, simplesmente, eles se deixassem em vida de casal, por baixo de um igual tecto. E que deixassem vir o porvir. E assim foi. De modos que ocorreu que, uma noite, Jerónimo tricotou seus dedos pela seda dos cabelos dela. E os dedos se deliberaram por mais corpo dela, até se atreverem por áreas recatadas. E se amaram e, de novo, recomeçaram o enlace.

Já se habituara ao desbotado dela, à lisura de seus cabelos, quando uma noite Ezequiela acordou esquimó, peles amareladas, olhos repuxados em ângulo e esquina. E, numa outra vez, ela se indianizou, pele aperdizada, cabelos azevichados.

Mas, estranhamente: ela sempre ela, sempre Ezequiela. E Jerónimo a foi aceitando, transitável mas intransmissível. No início, lhe custava esse acerto e reacerto. Mas depois até encontrou gosto nesse jogo de reencorpagem. E amava todas as formas, volumosas, translíneas, tamanhosas ou reduzidas. Até dava jeito: ele era o polígamo mais monógamo do universo.


Mia Couto, “Ezequiela, a humanidade”, in Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos, Ed. Caminho, 2001. (excerto)







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