Disponível em seu original aqui.
Juan
Eduardo Tesone*
Membro titular da
Société Psychanalytique de Paris
Membro titular em função didática da Asociación Psicoanalítica Argentina
Membro titular em função didática da Asociación Psicoanalítica Argentina
RESUMO
Na eleição do prenome
&– primeira inscrição simbólica do ser humano &– aparece em filigranas
o desejo dos pais. Quando a criança nasce não é uma tábula rasa, não está
virgem de toda inscrição. Um antetexto &– que é também um intertexto
parental &– lhe precede, no qual o prenome é a marca inscrita no desejo
parental. Sobre esse pré-texto, a criança terá de inscrever seu próprio texto,
se apropriar pela singularidade de suas marcas de seu próprio nome. A escrita
do prenome se converte na marca indelével de uma história simbólica familiar,
palimpsesto grupal no qual confluem várias gerações. Às vezes é necessário
folhear esse livro familiar, seguir seus movimentos, observar seus caracteres,
reconhecer nesse manuscrito as letras ligadas: vínculos que atravessam as
gerações, para permitir à criança fazer seu o nome próprio. Quando se produz um
sintoma, o nome poderia ser considerado como um criptograma, e decifrá-lo seria
útil para libertar a criança de um ponto de ancoragem necessário para sua
filiação, mas que pode às vezes amarrá-lo a um sintoma.
Palavras-chave: Nome, Desejo, Pais, Criança, Palimpsesto,
Inscrição.
ABSTRACT
In the choice of the child’s first name &–
first symbolic inscription of the human being &– the parents desire appears
as a watermark. At birth, the child is not a tabula rasa, he is not free from
any inscription. A fore-text precedes him, which is also a parental inter-text
where the first name becomes the written mark of the parental desire at stake.
On this pre-text, the child will have to inscribe his own text, to appropriate
his own name through the singularity of his marks. The writing of the first name
remains the indelible mark of a symbolic familial story, a group palimpsest in
which several generations often participate. It is sometimes necessary to look
through this family book, to follow its movements, to note its characters, to
recognize this manuscript of linked up letters, these links which have crossed
generations, enabling the child to take possession of his own name. The first
name should be taken up again as a cryptogram, the deciphering of which may
prove useful to free the child from an anchoring point certainly necessary for
his filiation, but which moored him to a symptom.
Keywords: Name, Desire, Parents,
Child, Palimpsest, Inscription.
RESUMEN
En la elección del
nombre de pila &– primera inscripción simbólica del ser humano &–
aparece en filigrana el deseo de los padres. Cuando nace, el niño no es una
tábula rasa, no está virgen de toda inscripción. Un ante-texto le precede que
también es inter-texto parental en el cual el nombre de pila es la huella
escrita del deseo parental. Sobre este pre-texto, el niño tendrá que inscribir
su propio texto, apropiarse por la singularidad de sus huellas su propio
nombre. La escritura del nombre de pila se convierte en la huella imborrable de
una historia simbólica familiar, palimpsesto grupal en el que confluyen varias
generaciones. A veces es necesario hojear este libro familiar, seguir sus
movimientos, observar sus caracteres, reconocer en este manuscrito las letras
ligadas; vínculos que atraviesan las generaciones, para permitir al niño de
hacer suyo su nombre propio. Cuando se produce un síntoma, el nombre podría ser
considerado como un criptograma, cuyo desciframiento sería útil para liberar al
niño de un punto de anclaje cierto necesario para su filiación, pero que a
veces puede amarrarlo a un síntoma.
Palabras
clave: Nombre, Deseo, Padres, Niño,
Palimpsesto, Inscripción.
“What’s in a name?”,
pergunta-se Shakespeare, por intermédio de Julieta, na tragédia intitulada com
o prenome2 dos
protagonistas, resumindo dessa maneira uma incógnita que interroga tanto a
linguistas como a filósofos, etnólogos e psicanalistas. Nosso nome próprio é
inseparável de nós mesmos, é a essência da pessoa. Basta pronunciar alguns
fonemas, articular algumas sílabas, aparentemente não significantes, para que a
simples evocação de um nome desperte amor ou ódio, traga lembranças tristes ou
alegres, provoque sentimentos claros e diferenciados ou caóticos e confusos
ligados à pessoa que detém referido nome. O mais tênue sussurro de um homem
pode ruborizar um adolescente; iluminar o olhar de uma criança; desencadear as
lágrimas ou a alegria de uma mãe, de um pai; provocar o palpitar de um amante;
gestos de furor e rancor de um inimigo; reconhecimento e gratidão do aluno ao
seu professor e dos filhos aos pais. O nome é inseparável da pessoa que serve
para individualizá-lo.
Seria em vão tentar
estabelecer uma origem dos nomes próprios. Tão em vão como abrir uma discussão
sobre a criação da linguagem. Penso, no entanto, que nomeação e palavra estão
indissoluvelmente ligadas. Neste mundo &– e em todos os mundos possíveis
que queiramos imaginar &–, ninguém escapa ao nome próprio. O nome é, ao
mesmo tempo, um direito da criança e uma instituição que individualiza um ato
de reconhecimento, indissoluvelmente ligada como está às funções simbólicas da
maternidade e paternidade. A convenção é particular a cada sociedade e cada uma
impõe seus modos de nomear os indivíduos. Nomear é fazer entrar a criança na
ordem das relações humanas, daí a importância que adquire o nome que se dá a
uma criança e que ela recebe. Não ter nome é um desastre, uma desordem
absoluta. Levar um nome significa ter um lugar num sistema relacional. Para
existir verdadeiramente, é antes necessário ter sido nomeado; os nomes são
portadores de significação e reveladores de vocações (Goldstain, 1983).
Escolher, dar um nome
a uma criança é fazer-lhe a doação de uma história imaginária e simbólica
familiar. Doação essa que a insere na continuidade de uma filiação, a inscreve
nas linhagens maternas e paternas: fio de Ariadne transgeracional, que lhe
indica um caminho, sem traçá-lo de antemão, uma vez que o nome faz desse
sujeito um ser insubstituível, que não se confunde com nenhum dos outros
membros das demais linhagens.
Essa denominação
inclui algo de sagrado, por não ser um bem que se dá ou se vende: é conferido
para ser guardado. Seria inconcebível imaginar um contrato entre a criança e os
pais que antecedesse o nascimento, destaca Godelier (1998). Seria uma ideia
absurda, na medida em que o primeiro laço entre os seres humanos não é passível
de ser negociado entre a criança e seus pais. Nesse sentido, a vida institui-se
como um dom unilateral e uma dívida em toda sociedade. No entanto, tal dívida
simbólica não se paga necessariamente em reciprocidade direta com seus
antecessores, mas através da geração seguinte, quando a pessoa passa, por sua
vez, a ter descendentes.
Na eleição do nome da
criança &– primeira inscrição simbólica do ser humano &–, aparece, em
filigrana, o desejo dos pais. Quando nasce, a criança não é uma tábula rasa,
não está virgem de toda inscrição. Um antetexto &– que é também um
intertexto parental &– a precede. O nome se deve ao traço inscrito na
encruzilhada do desejo dos pais. Sobre tal pré-texto, a criança inscreverá seu
próprio texto e se apropriará, pela singularidade de seus traços, de seu
próprio nome (Tesone, 1988).
Convém então
percorrer esse livro familiar, seguir seus movimentos, revelar seus caracteres,
reconhecer esse manuscrito de letras cursivas ligadas por laços que atravessam
várias gerações, para permitir à criança fazer seu o nome próprio. Revitalizar
nosso próprio nome é sempre uma tarefa inacabada.
A escolha do nome
marca a distancia entre a procriação biológica e a filiação. O ato de conferir
um nome à criança sanciona o fato de que a filiação não é um acontecimento
biológico, mas simbólico. Trata-se de uma escolha que a situa num dispositivo
institucional no qual cada um tem seu lugar na estrutura familiar.
A família na qual a
criança se inscreve tem um passado, um tecido reticular inter-relacional, uma
rede transgeracional, que alberga a criança que vem ao mundo no seu seio. A
família oferece à criança um espaço, uma estrutura significante que opera como
pré-forma. A criança recebe, assim, ainda antes de nascer, uma mensagem emitida
pelos significantes parentais. Atribui-se um nome a uma criança &– em
contrapartida, às vezes, atribui-se uma criança a um nome.
Prefiguraria então o
nome um destino inexorável? Seria verdade, como questiona Diderot, por meio da
voz de Jacques, o fatalista, que “tudo o que nos acontece de bom e de mau aqui
embaixo, estava escrito lá em cima?”. Acrescentando: “Ah, Senhor, é aqui que o
Senhor verá quão pouco somos donos de nossos destinos, e quantas coisas há
escritas no grande pergaminho!” (citado por Starobinsky, 1984, p. 19). Veremos,
mais adiante, quais são as vias que nos permitem afastar dessa perspectiva
determinista.
No pensamento grego,
três aspectos da figura composta do destino podem ser destacados:
a) Moira, inflexível
predeterminação de uma existência, palavras pronunciadas de antemão, às quais
deverá a história toda ceder;
b) Tykhe, o encontro
(bom ou mau), o acaso;
c) Dáimon, a
instância, ou seja, o personagem interno do sujeito, ignorado dele mesmo e
guiando seus passos, independentemente de sua vontade.
O nome reúne os três
aspectos, faz uma condensação da necessidade e do acaso, deixando ao sujeito a
possibilidade de se reapropriar de seu prenome, que será sempre seu nome, mas
enriquecido pela incerteza do acaso, numa reescrita permanente. Em certas
culturas, essa possibilidade pauta-se por uma mudança do prenome na idade
adulta ou de acordo com os diferentes ciclos da vida.
Na escolha do
prenome, sempre há uma poiética, ou seja, um ato de criação poético que se
recria constantemente, na medida em que a criança poderá fazer seu o seu nome.
Somente no decorrer desse processo o nome se converterá realmente em nome
próprio.
Na escolha de seu
nome, a criança é anunciada pelos pais. Para seu devir, o sujeito da enunciação
terá que fazer seu o nome que lhe foi dado. É o que Françoise Zonabend (1977)
denomina “a constante dissociação entre a identidade recebida e identidade
vivida”.
As razões que motivam
a escolha do prenome podem parecer relativamente claras à primeira vista. Isso
não impede que a verdadeira encruzilhada permaneça inconsciente; contudo,
resulta ele em uma condensação, uma sobredeterminação significante que o enche de
sentido.
Tinta indelével,
transgeracional, que impregna e desenha os traços do nome.
Se em algum momento a
criança tivesse um sintoma, o prenome poderia ser tomado como um criptograma, e
decifrá-lo talvez se revelasse útil para libertar a criança de um ponto de
clivagem &– necessário, sem dúvida, para sua filiação, mas que pode às
vezes amarrá-lo a uma patologia.
Desse ponto de vista,
é importante que o prenome não permaneça aderido aos desejos dos pais, mas que
se abra para outras significações possíveis. A escolha do nome da criança pode
ser o ponto de convergência das linhagens maternas e paternas, sob a condição
de que esse ponto de entrecruzamento seja descentrado. Tanto em respeito às
linhas diretoras dos desejos dos pais como de si mesmo e da assunção de seu
próprio inconsciente como outro.
Algumas
considerações históricas e culturais sobre a nomeação
Sobrenome e prenome
são os dois elementos do sistema onomástico moderno, comum em toda a Europa.
Que o sobrenome tenha podido adquirir uma importância maior em nosso sistema
atual não deve nos fazer esquecer que, na realidade, seu surgimento é recente.
A utilização do nome começa a aparecer por volta do ano 1000, e é tão somente
durante o renascimento que seu uso se estenderá a toda Europa. A partir dali,
prevalece a fórmula: prenome mais sobrenome. É durante o século 11 que se
produz a mutação mais decisiva, através da qual o sistema de dupla denominação
substitui o sistema de nominação única.
O Concílio de Trento
(1563) contribui para essa evolução, quando ordena o registro dos prenomes,
utilização que tinha começado a se instaurar a partir dos séculos 12 e 13 para
evitar o casamento de consanguíneos.
Sem nos estendermos
demasiadamente sobre a aparição e evolução na antroponímia moderna do uso do
nome de família, convém destacar que até tal data (com exceção do sistema de
nominação romano) existia tão só um nome. Esse nome único correspondia, em
linhas gerais, ao nosso prenome atual e não era transmissível de geração em
geração.
O nome primitivo, em
sua origem, era único. Não existia o conjunto prenome e sobrenome. O nome era
equivalente ao nosso atual prenome, na medida em que não havia uma transmissão
automática do mesmo: “O prefixo pré (em francês, o prenome fala-se “prénom”)
não deve ser entendido como indicando uma ideia de posição gramatical colocada
antes do nome” (Jarrasé, 1901), de onde se deduz que somente implica a ideia de
anterioridade em relação à origem. Pois bem, etimologicamente falando, o
prenome (“prénom”) é o primeiro dos nomes.
Nome
único, prenome e sobrenome
Na origem da
humanidade, para cada criança via-se atribuir um nome diferente e livremente
escolhido pelos seus genitores. Quem dava o nome não se limitava, como
atualmente, a buscar aquele nome em uma série preestabelecida: participava,
sim, de um verdadeiro ato de criação de um nome. As motivações podiam ser
influenciadas por um acontecimento histórico da comunidade; características do
parto ou traços da criança; a relação com os ancestrais; ou, prevalentemente,
pela expressão dos desejos concernentes à criança. Muito frequentemente, o nome
era inédito (os homônimos, certamente, eram raros), de modo que a criação
simbólica desse nome dotava a criança de uma originalidade comparável ao
patrimônio genético.
O nome carimba de
maneira indelével o direito de cada um a ser reconhecido pelos outros em sua
identidade inalienável. Se o nome é propriedade exclusiva de um determinado
sujeito, seu sentido não se esgota com essa qualidade: confere-lhe um título
que faz dele alguém insubstituível.
Habitualmente, dentro
das possibilidades oferecidas pela linguagem, contamos com palavras que
habilitam a substituição de um termo por outro, dotando uma ideia de maior
precisão ou a levando a um voo metafórico. Não podemos fazer o mesmo com os
nomes de pessoas. A permanência que a nomeação confere ao sujeito, se não se
inscreve no registro do ser, sempre mutante, grava-se no discurso: enquanto seu
nome próprio não se tenha apagado da lembrança dos homens, poder-se-á falar de
um indivíduo (Pariente, 1982).
A continuidade do
nome como referente da pessoa pode, eventualmente, não se interromper com sua
morte (Amado, Borges, Cervantes, Pessoa, Proust, Shakespeare, por exemplo).
Nomes existem que permanecem vivos na memória dos homens: nos discursos
alusivos é que seu estatuto imanente persiste para além de sua existência real.
Outorgar
um nome: é imperativo nomear o recém-nascido?
“Sediento
de saber lo que Dios sabe Judá León se dio a permutaciones/ de letras y a
complejas variaciones/ Y al fin pronunció el Nombre que es la Clave”.
J. L. Borges
El otro, el mismo
El otro, el mismo
Nomear para os
antigos habitantes da Mesopotâmia era um chamado à vida: nenhum ser podia
existir sem antes ter recebido um nome (André-Leickman, 1983). Ninguém pode
levar um nome se não foi nomeado; fundamentalmente, ninguém pode levar um nome
sem ter sido nomeado por outro. O ato de nomear permite que a criança entre na
ordem das relações humanas. Ter, possuir, levar um nome, significa adquirir um
lugar no sistema simbólico. Ninguém escapa da assinatura de um nome próprio.
Nomear é um ato cuja
propriedade é fazer um buraco no Uno (Clerget, 1990) do narcisismo onipotente.
Ou seja, a nomeação impõe um limite à expansão narcísica, confrontando o
sujeito à partição (consciente-inconsciente), aos limites da castração
simbólica e a falta que significa, para todo ser, o luto da completude. Luto do
narcisismo, entendido como o desejo de ser Uno, utopia unitária, totalizante,
puro ego sem alter (Green,
1976). Ante o chamado da ninfa Eco, apaixonada, Narciso permanece indiferente,
sem levar em conta seus gemidos. Ser interpelado não encontra ressonância em
Narciso, que prefere morrer afogado a responder ao chamado de seu nome.
Duas meninas de 7
anos, Cécile e Aline, chegaram a um orfanato por determinação do juizado de
menores. Nada parecia diferenciar aquelas gêmeas univitelinas; nem os traços
tristes de seus rostos, nem o movimento de seus longos cabelos louros, nem seus
vestidos amarelos, nem suas historias compartilhadas de meninas maltratadas.
Somente seus prenomes &– Cécile, Aline &– garantiam-lhe o
reconhecimento de uma identidade própria, de uma continuidade em suas histórias
entrecortadas, com rupturas e separações desde sua precoce infância. E isso
sempre que tal singularidade fosse reconhecida pelo outro. Motivo pelo qual os
assistentes sociais da instituição, fascinados pela semelhança entre elas, como
“duas gotas d’água” (as de Narciso?), tendiam chamar, de forma indiferente, a
uma e a outra: Céline.
Não é meu propósito
abordar a problemática gemelar, que nos conduziria por outros caminhos. Cito
esta vinheta clínica porque ela nos brinda com uma contraexemplificação do que
significa o ato da nomear. Os assistentes sociais, encantados pelo efeito do
duplo, fazem da diferenciação identitária uma confusão de dois corpos Unos. Céline, como chamavam de maneira indiferenciada uma ou
outra das gêmeas, converte-se em nominação negativa, em nominação
desubjetivizante.
A nomeação, em sua
vertente positiva, no entanto, separa, distingue, faz do sujeito um ser
insubstituível. “O nascimento biológico não é suficiente para separar o
recém-nascido do mundo sobrenatural ou do invisível”, afirma O. Journet,
(1990), acrescentando que o momento de dar um nome é um dos momentos
privilegiados de ancoragem do lactante na sociedade humana.
Funções
do nome
O nome designa a
pessoa na sua singular e inalterável transcendência, consagra-a em sua
originalidade. O homem interpenetra-se com o sujeito e essa unidade vale em
todo momento e em todo lugar (Vergote, 1969). O nome não é como uma vestimenta
mal ajambrada, passível de ser tirada ou descartada &– ao contrário, é um
casaco perfeitamente adaptado ou, mais precisamente, é como a pele, que não se
pode descolar ou rasgar sem ferir a pessoa.
“A vida” &–
escreve Denis Vasse (1974, p. 54) &– “atravessa o homem mais do que ele a
atravessa. Em seu corpo que passa, a vida diz como que estava ali antes dele, e
o traço que nele deixou é o seu nome próprio”.
O prenome, como uma
segunda pele, embala a criança, serve-lhe de limite entre seu corpo e o corpo do
outro. A nomeação, como ato de reconhecimento, está indissoluvelmente ligada à
função simbólica do parentesco.3Com efeito, quando uma
criança nasce, sua chegada ao mundo não lhe garante por si mesma sua inscrição
no universo simbólico. Tal possibilidade tem de ser lhe oferecida pelo Outro,
pela linguagem de sua ascendência, linhagem que lhe precede.
Segundo Ouaknin &
Rotnemer (1993), o nome tem essencialmente três funções: de identificação, de
filiação e de projeto.
Nas sociedades
ocidentais, o sentido dos prenomes sofreu uma opacidade, na medida em que são
escolhidos a partir de uma lista previamente existente. Não é o caso, na
maioria dos povos da antiguidade ou na África tribal, onde o sentido dos nomes
é relativamente transparente, já que são uma livre criação dos que dão o nome,
geralmente, os pais, às vezes com a contribuição do entorno familiar e social.
Parece-me, no entanto
&– é a tese de meu trabalho &–, que em nossa sociedade o sentido não
desapareceu. Não estou me referindo ao sentido literal dos prenomes do qual
falam os dicionários especializados. Falo das motivações pessoais dos pais e
das condições mitopoiéticas da escolha do prenome que, segundo meu julgamento,
passou ao registro inconsciente. Ainda que velado pelos mecanismos da repressão
inconsciente, tanto para um observador externo como para o outorgante do nome,
operam como força sempre ativa. Dito sentido &– em parte, consciente e, de
todos os modos, com amplas ramificações no inconsciente do outorgante do nome
&– atua como ponto de ancoragem da personalidade do receptor, podendo até,
sem que o mesmo chegue a intuir, influenciar em seu destino.
Na sua mitopoiese, o
prenome contém esses “outros” no “nós” que nos reenvia aos que nos precedem.
Realmente, antes de ser “eu”, o “nós” nos precede e nos constitui. Como
enfatiza Alain de Mijolla (1986), cada membro da uma família é, por sua vez,
único e coletivo. O autor sugere que cada um de nós representa um pião
suplementar num vasto tabuleiro de xadrez, para além do valor específico ou da
forma privilegiada que tenha conseguido se alcançar, configuração essa
construída muito tempo antes de nossa chegada ao mundo, como ocorre em Através
do espelho e o que encontrou Alice ali (Carrol,
1871/2005), onde os lugares do Rei e da Rainha já estavam ocupados.
Antes de chegarmos ao
mundo, uma complexa rede de relacionamentos familiares nos precede e, em parte,
nos determina, já que, de maneira inconsciente, várias gerações confluem na
escolha do prenome da criança.
As gerações que nos
precedem nos instituem e nos constroem: no interjogo da voz, como envoltório
sonoro e, no olhar do outro, como envoltório visual. Esse outro primordial
&– o olhar e a voz materna &– é também paterno na relação ternária, que
supõe a introdução da Lei simbólica do Nome do pai, que não é fazedor da Lei,
mas tão somente seu portador. Para ser um, primeiramente há que ser três e,
finalmente, dois. Tal a complexa matemática da identidade. Não se pode ser um
senão no interior da estrutura ternária do Édipo que nos confronta à falta, à
perda da onipotência, à diferença dos sexos e das gerações.
A função princeps da
família é dar um lugar à criança geradora de alteridade. É por intermédio da
interpelação de seu prenome que a criança vai se reconhecendo como ser-separado
de seus pais. A criança responde ao seu prenome antes ainda de conseguir dizer
“eu”, anterioridade ontológica que a confirma na sua identidade própria e
precede sua possibilidade de se anunciar com o pronome pessoal separado do
“você”.
A chegada de uma
criança reativa nos pais suas próprias relações infantis com os pais da
infância e redefine as relações com os mesmos, eventualmente com seus avôs.
Cada geração é resituada na cadeia de filiação como um elo que pressupõe um
projeto de vida, como também a aceitação dos passos do tempo e da morte. Os
pais estão eles mesmos ligados aos próprios pais por sentimentos,
representações conscientes e inconscientes, cuja persistência e vivacidade
podem influenciar na relação com seus filhos. A criança recebe o peso
iniludível das expectativas imaginárias dos pais e, como espelho
transgeracional, recebe o reflexo de um olhar que se confunde com as relações
familiares que precederam seu nascimento. Ainda assim, uma violência inicial é
inevitável, razão pela qual os pais atribuem sentido aos seus primeiros gestos
e vocalizações.
O triângulo edípico
de uma geração se constrói com os traços dos triângulos edípicos das gerações
precedentes. A criança que virá ocupar o vértice do triângulo é depositária de
uma sucessão de triângulos que podem remontar ao infinito. Contudo, ela não é
um navegante passivo, submetido aos embates dos ventos transgeracionais que a
arrastam perigosamente sobre os rochedos da costa. Margeia a criança o rumo que
lhe dita seu prenome e, como marinheiro bem treinado, pode tomar o leme de sua
existência. O prenome admite ser vivido como uma morada herdada, que há de se
fazer própria, a qual se reconstrói e da qual se reapropria, ao mesmo tempo em
que nela se habita.
Ocupar um lugar é
dar-lhe movimento e vitalidade no encadeamento dos lugares familiares e, por
essa via, aceitar, admitir em si-mesmo esses outros que nos constituíram,
fazê-los paradoxalmente familiares, no sentido de acompanhantes continentes de
nossas angústias, no lugar de sombras que atuam apesar de nós mesmos. Receber e
transmitir são atos essencialmente humanos. Receber um prenome e,
posteriormente, por sua vez conferir um prenome, constitui um atributo, uma
doação simbólica que ocupa o centro de gravidade do ato inaugural que se abre à
humanização.
Da
força determinante, à força significante do nome
“Si
(como el griego afirma en el Cratilo)/ El nombre es arquetipo de la cosa,/ En
las letras de rosa está la rosa/ Y todo el Nilo en la palabra Nilo.”
J. L. Borges
El otro, el mismo
El otro, el mismo
O prenome possui uma
força significante, é o ponto de articulação entre o antetexto (mito familiar)
e o texto (o sujeito). Quando falamos de força significante do prenome,
queremos dizer que a criança estará influenciada pela força dos significantes
parentais inconscientemente relacionados com esse nome. Afastamo-nos assim de
outros autores, como Abraham (1965) e Steckel (citado por Abraham), que falam
da força determinante do nome do ponto de vista semântico. Para esses autores,
o que incidiria no destino do individuo seria o significado, o valor semântico
do sobrenome.
Admitindo que o nome
de uma pessoa não seja indiferente, a tal ponto que a pessoa possa se
identificar com seu valor semântico, pensamos que atualmente convém relativizar
o valor semântico do sobrenome que, na nossa cultura, não tem a mesma carga que
na antiguidade e ao qual não pode se atribuir hoje um peso semelhante.
A transmissão patri
ou matrilinear do sobrenome, que se tornou mais ou menos automática, tira-lhe,
em nossa opinião, essa força determinante de que Abraham fala.
Se bem que o
sobrenome consiga dar indícios que nos orientam a respeito da origem étnica,
cultural ou estratificação social, tais possibilidades &– que diríamos
metonímicas &– não nos ajudam a compreender o desejo parental.
Sua transmissão
obedece, em todo caso, a mecanismos de organização social e sua regulação
depende exclusivamente de regras comunitárias.
Se o ato de nomear
pudesse se separar da transmissão do sobrenome e da escolha do prenome, não
seria fundamentalmente através deste último que o desejo parental se
expressaria?
Se há uma força
“determinante” (nós diríamos significante), acaso não se patenteia ela nas
razões inconscientes de tal escolha?
Como vimos na
primeira parte deste nosso trabalho, na antiguidade e nos povos de tradição
oral, os fantasmas e os desejos parentais aparecem de uma maneira mais
transparente, já que o nome resulta de um ato de criação inédito, único e
significante. O nome, na sua semantização, transcreve, então, os desejos
parentais em relação ao filho.
Um nome nunca é
indiferente, implica uma série de relações entre quem o detém e a fonte do qual
procede. Nesse sentido, o prenome somente é um nome “próprio” caso se insira
numa historia simbólica familiar e social. É o ponto de convergência das
linhagens materna e paterna.
Atualmente, em nossa
cultura ocidental, isso já não é possível porque o prenome se escolhe numa
lista previamente estabelecida. No entanto, trate-se do uso, anódino somente em
aparência, dos santos do calendário ou dos nomes dos avôs ou dos padrinhos,
seja através da simples escolha por similaridade fonética ou do uso de um nome
na moda, sempre há uma escolha singular &– singularidade que carimba o nome
da criança com o brasão familiar. O caráter inconsciente dos motivos que
impulsionam essa escolha não impede que o carimbo familiar estampe caracteres
indeléveis na grafia de tal nome.
Com frequência, o
nome impõe-se no lugar de ser escolhido conscientemente e, sem que bem se
conheça os motivos, determina a nossa escolha. Talvez seja precisamente nesse
caso que o ato de nomear seja ainda mais significativo.
Que o prenome esteja
desprovido de significado (de sentido explícito) não quer dizer que careça de
efeito significante, dado que se situa na encruzilhada do desejo parental com
relação à criança.
O
aparelho psíquico como estratos de escritas que se reescrevem constantemente
Na escolha do prenome
há uma inscrição do desejo parental e no mesmo ato há uma transcrição. O nome é
o sedimento móbil de um mito familiar em suspensão que compromete a criança. É
a armação, o cimento, o pedestal de sua futura identidade.
O nome é um
compromisso entre os desejos materno e paterno a respeito do filho. Às vezes
esse compromisso condensa-se num só nome, às vezes requerem-se vários. Se o
prenome do filho coincide com o do pai, o segundo e o terceiro nome adquirem
frequentemente um valor distintivo. Acaso não dizemos, quando alguém assina com
um pseudônimo, que não quer o mesmo se comprometer?
No prenome,
sobredeterminado, condensam-se e entrecruzam-se as cadeias associativas dos
sonhos dos pais em relação ao filho que quiseram ter. O significante de nosso
nome contém, numa alquimia fundadora, o desejo de nossos pais, anterior ao
nosso próprio nascimento. Nos traços do nome estão as marcas que outros imprimem
em nós, entretecido de linhas que atravessam gerações.
No entanto, só nos
escrevemos escrevendo, diz Derrida, fazendo alusão à participação do sujeito na
escrita do próprio texto (1967). As inscrições psíquicas, segundo assinala
Marie Moscovici (1984), funcionam como capas de textos, cada uma das quais, ao
ser apreendida, remete constantemente a outra, ao tempo em que se reescreve a
si mesma, sem nunca chegar a um ponto final. Mais do que ter um destino,
trata-se de descobrir os destinos possíveis em nós para escolher àquele que
mais se aproxime da nossa subjetividade. Cada elo da cadeia cruza-se com a
trama de outra história e, desse modo, insere-se num tecido mais amplo, num
texto virtualmente infinito. Há alguma coisa da biblioteca total de Borges nas
capas psíquicas.
Sobre o antetexto,
que também é intertexto, a criança imprimirá com seu cunho seu próprio texto e
seu fará seu nome próprio. O prenome é o ponto de articulação entre os textos
desse palimpsesto4 familiar
que recobre várias gerações.
Na trama do nome,
inscrevem-se as marcas de algum outro, se entrelaçam as tramas que atravessam
as gerações, reimprimem-se os textos do mito familiar que virá a comprometer a
identidade da criança.
Um pai que tinha sido
condenado pela justiça francesa por maus tratos aos quatro filhos, ante a nossa
pergunta do porquê da escolha de seus prenomes, explica que buscara para cada
um deles um denominador comum. Os nomes Catherine, Ghislaine, Hubert e
Josephine tinham sido escolhidos por conterem a letra “h”, que em francês
pronuncia-se “hache”. A mesma palavra que serve para designar a letra “hache”
utiliza-se para designar, em castelhano, a ferramenta “hache” (machado): cuja
imagem é suscetível de expressar a violência inaudita que tal pai tinha
descarregado sobre seus filhos. No seu critério para escolher aqueles nomes,
não se prefiguraria através da “hache”, intercalada em cada um, a violência que
exerceria mais tarde sobre eles, a tal ponto que suscitou a intervenção da
justiça como medida extrema de proteção dos mesmos diante de tão particular
“lenhador”?
Em razão de no
prenome da criança cruzarem-se, entretecerem-se e fusionarem-se,
preestabelecidas, as cadeias associativas dos sonhos dos pais e da família em
seu conjunto a respeito da criança que vai nascer, o nome conserva, como uma
cera, as marcas do outro, a superposição das marcas que atravessam as gerações
que o habitam. A filiação, transmissão simbolizante e instituinte da
subjetividade da criança, não é redutível à procriação biológica.
A respeito do
funcionamento e da presença das marcas na vida psíquica, Derrida (1967) sugere
pensar a vida como uma marca com força determinante, que opera antes de o ser existir
como presença.
Freud (1896/1996)
propõe, como sabemos, uma concepção do aparelho psíquico como um sistema de
inscrições sobreimpressas, simultâneas e sucessivas, que se organizam e se
reorganizam, retroativamente: “Nosso mecanismo psíquico se estabelece através
de um processo de estratificação: os materiais presentes na forma de marcas de
memória se reorganizam, às vezes, em função de novas circunstâncias”. Para
Freud, o aparelho psíquico e a memória são como capas de transcrição, em que
“todo novo registro altera o registro anterior e faz derivar sobre o mesmo o
processo de excitação”.
Essa concepção
freudiana é compatível com a ideia de um palimpsesto intergeracional
inconsciente, que se condensa no prenome do sujeito e que resulta da
sedimentação das diferentes capas de estratificação das gerações sucessivas.
Se essa proposta é
aceita, pode-se conceber o antetexto, que é o prenome, já não mais como uma
estátua imóvel, esculpida na pedra, uma vez e para sempre, mas como uma
escultura cinética, que admitirá novas orientações em seu movimento, assumindo
diferentes formas em reformulações incessantes.
A escrita que o
sujeito fará de seu próprio texto não se soma ao antetexto que o precede, como
uma página de agenda. Na verdade, ele permanentemente o reescreve, modificando
seu sentido inicial.
A história mítica
familiar permanece ancorada, ao menos parcialmente, no nome do nascimento. As
capas de inscrições, no entanto, não constituem capas geológicas facilmente
reconhecíveis numa estratificação detectável, em que a sequência do tempo
projeta-se verticalmente no espaço. São capas dotadas de dinamismo próprio e em
constante interação.
Acaso não foi a
partir dos nomes de Cleópatra e Ptolomeu que Champollion pôde decifrar os
hieróglifos e articular, interpretar, textos até então impossíveis de traduzir?
A genealogia serve para fabricar o sujeito, afirma Legendre (2000). A linhagem,
a genealogia, se traduz por um nome que marca o limite, como uma pele que
embala o sujeito e o diferencia do outro. As forças dos ordenamentos
genealógicos provêm, continua Legendre, de um princípio de refutação do magma
familiar, princípio que introduz a divisão dos lugares e a sucessão do sujeito
em ditos lugares. A subjetividade encontra-se pré-fabricada com anterioridade
ao nascimento. Segundo o autor, para que exista Édipo, necessita-se uma
reprodução genealógica, o principio genealógico &– ou seja, sem discurso
fundador não há vida humana.
O
prenome na clínica psicanalítica
Os pais anunciam a
criança antes ainda de sua concepção: o discurso sobre a criança passa a criar
um lugar que lhe será oferecido. Esse discurso precede à criança, dá-lhe uma
existência imaginária prévia à sua existência real. A criança inaugura um
esboço de subjetividade a partir do momento em que essa fantasia se materializa
num nome. Não escolhemos desde logo o nome ou os nomes da criança. É
interessante, aqui, ter em conta também todos os nomes aventados, que têm uma
existência provisória; em compasso de espera, são lembrados, discutidos e
deixados de lado quando da opção pelo nome ou nomes finalmente escolhidos.
O nome tem raízes que
remontam a longínquos tempos. Na árvore genealógica familiar, o nome é por sua
vez raiz e novo broto, provindo da terra dos antepassados, reaparece no verdor
das folhas das gerações que se sucedem.
A importância dos
nomes na transmissão do desejo dos pais, ancoragem geracional, certamente é
alienante em princípio. As expectativas dos pais &– na qual o nome
atribuído ao filho/a é em parte depositário&– não deixam de ser uma
violência, na medida em que se atribui à criança um sentido que precede sua
própria subjetividade. Mas tal violência primária é necessária para a fundação
do sujeito, como propõe Piera Aulagnier (1975). A criança é falada muito tempo
antes de falar por si mesma. Constitui-se por desejos que não são seus e que,
no entanto, serão o andaime da estrutura de sua futura identidade: permanecendo
em filigranas, aguardam que possa ela se apropriar de seu nome e de seus
próprios desejos.
No momento em que os
fantasmas dos pais encontram ancoragem no nome da criança, ainda antes de seu
nascimento, desenham com tinta indelével um esboço de subjetividade do mesmo. O
nome tem um efeito pré-formador e indutor dessa identidade, necessária como um
pedestal para sua identidade. O que os pais desejam, se faz corpo no nome da
criança. Violência certamente pré-formada, fora da identidade da criança, mas
que resulta necessária como originária e constituinte essencial de seu
psiquismo. É o início de uma significância, ou seja, de uma busca de sentido
que nunca permanecerá obliterada, na medida em que a criança a retome como
própria, mais adiante, numa incessante busca. No século 16, relembra Barthes
(1981), Montaigne disse: “Isto sou eu” e não: “E sou isto”, o que é
perfeitamente legítimo, uma vez que o sujeito compõe-se de tudo o que lhe vem e
de tudo o que faz. O sujeito não é realmente ele mesmo, senão ao final, como
produto, afirma Barthes.
Somente na fantasia
psicótica do autogeração, a cena primária do coito parental é denegada; como
consequência, o nome não pode ser vivido como produto dessa união, por sua vez
biológica do casal e fantasmática das linhagens parentais.
Sublinhamos, então,
que a criança é, em primeira instância, falada; em seguida, nomeada na
fantasmatização que precede seu nascimento; e, finalmente, após seu nascimento
&– e às vezes antes dele &–, chamada numa interlocução, no interjogo da
demanda recíproca. O nome, envoltório sonoro do ego, rodeia a criança
protegendo seu ego de sua fragilidade inicial, espelho sonoro que antecipa uma
unidade buscada. É no olhar da mãe que a criança se reconhece.
Que vê o bebê quando
volta seu olhar para o rosto da mãe? Geralmente se vê a si mesmo, responde
Winnicott (1971/1975). À importância que tem o sentido da vista no intercâmbio
entre a mãe e seu filho, podemos acrescentar o sentido auditivo. Realmente, a
enunciação do nome, numa função interpeladora, intervém como espelho sonoro. As
capacidades mentais se exercem primeiro sobre material acústico, o ego se forma
como um envoltório sonoro na experiência do banho de sons, concomitantemente à
amamentação (Anzieu, 1976). É na enunciação de meu nome que existo enquanto sujeito.
Existo no reflexo, por sua vez visual do olhar de minha mãe &– e sonoro, de
sua voz que me chama. Isso sucede igualmente nas crianças que têm algum déficit
sensorial, em quem a carência visual ou auditiva se vê compensada pela
sensorialidade tátil e olfativa.
Nos casos em que na
infância seja registrado um sintoma psicopatológico, o nome pode adquirir um
valor particular. Opera ele como na margem de uma encruzilhada de caminhos,
onde o enigma do sintoma se impõe e nos interroga.
No relato que se segue,
fragmentos de discursos de um processo terapêutico, tentaremos transmitir desde
a vitalidade da clínica àqueles fantasmas da história do paciente, que habitam
as dobras do nome em forma de sintomas.
Gilles,
entre o nome do progenitor e o nome do pai
Gilles, 34 anos, vem
à consulta por problemas de irritabilidade, insônia e um mal-estar difuso que o
paralisa em sua vida profissional. Toxicômano, ele luta contra uma antiga
dependência da cocaína. Apesar de não ignorar o dano que a droga lhe causa, é
impossível para ele deixá-la por completo e ainda a consome várias vezes por
semana. Comerciante, tem em sociedade um negócio de roupas para homens, ramo
que não é estranho à sua problemática. Reconhecido no meio comercial da cidade
onde mora, não podia aparecer formalmente no registro do comércio do qual
participa por se encontrar legalmente impossibilitado: anos atrás, emitira
cheques sem fundos que lhe renderam uma condenação penal. Por esse motivo, a
empresa encontra-se em nome do sócio, que no ramo é bem menos qualificado.
Hábil nas negociações e no contato com lojas de grandes grifes, junto as quais
era ele o interlocutor privilegiado, Gilles estava paradoxalmente submetido a
transferir para seu sócio as responsabilidades de caráter legal: assinar contratos,
efetuar pagamentos. No plano estritamente funcional, Gilles figurava somente
como empregado, mesmo que na prática, para garantir a gestão comercial, fosse
ele quem aportasse o saber e o talento.
Desde a separação de
seus pais, Gilles crescera rodeado &– quase que se diria envelopado &–
por mulheres. Sua mãe em primeiro lugar, mas também sua avó materna e suas três
irmãs mais velhas. Seus pais tinham se separado quando ele era muito pequeno e
as relações de Gilles com seu pai eram distantes. Chegando à adolescência quase
sem nenhuma referência masculina, sentiu necessidade, contrariamente à sua
irmã, de tentar se aproximar do pai. Pai este que, em sua busca de imagos
masculinas, sempre lhe fora vetado pela mãe. Após múltiplas averiguações,
conseguiu localizá-lo naquela mesma cidade e, com afinco, planejou um encontro.
Naquela sua busca de um modelo de identificação masculina que lhe faltava, ter
conseguido finalmente encontrar seu pai biológico o fascinou, precipitando-se
Gilles no turbilhão de querer imitá-lo a qualquer preço.
Modo desesperador de
se dotar de uma casca de identidade masculina em frente às suas angústias de
identidade sexual. O descobrimento fortuito do fato de que seu pai cumprira uma
condenação, que significara vários anos de cárcere, não o fez duvidar do
interesse pelo encontro, na sua vertigem de busca identitária. Jogador
compulsivo, o pai frequentava regularmente cassinos e casas clandestinas de
jogo. Para “festejar” o reencontro, levou seu filho com ele e o iniciou não
somente no jogo, mas também no consumo de cocaína. Assim, Gilles, aos 18 anos,
numa dramática identificação com seu pai biológico, transformou-se num jogador
e toxicômano como ele e com ele.
Por outro lado, o pai
pressionara Gilles a tornar-se seu cúmplice em delitos comerciais. Certa
oportunidade, fora compelido por seu pai a assinar cheques sem fundos, o que
lhe acarretaria mais tarde uma condenação penal e a inibição comercial
assinalada no início deste relato clínico. Condenado: sensação que percorria a juventude de Gilles.
Condenado à carência de um pai, condenado a seguir na sua busca desesperada de
identificação masculina, identificando-se a um pai que nunca tinha ocupado o
lugar de um pai simbólico. Gilles tinha buscado um pai e não se dera conta de
que somente tinha encontrado a seu genitor biológico, estelionatário
profissional, mas, sobretudo, estelionatário dos afetos filiais.
No momento da
consulta inicial, Gilles mantinha uma relação de desconfiança com seu pai, não
ignorava que o melhor para ele era se afastar, mas não tinha conseguido.
Continuava escutando os mortíferos cantos de sereia de seu genitor.
Não é meu propósito
dar conta da psicoterapia de Gilles no seu conjunto nem da variedade de seus
movimentos transferenciais. Somente destacarei um aspecto ligado a seu nome,
que me pareceu eloquente em razão de ter adquirido um particular valor em seu
processo terapêutico. Trouxe-me ele um dia o relato do acontecido quando se
apresentara para renovar seu documento de identidade. Ao completar o
formulário, dera-se conta de que escrevera Gilles Luc e não Gilles Roger, como
realmente se chamava. Roger era o nome do seu pai e seu segundo nome. No lugar
de escrever Roger, nome compartilhado com o pai, escrevera Luc, primeiro nome
de seu avô materno. Gilles não tinha conhecido esse avô, falecido antes de seu
nascimento, mas do qual e de forma muito vívida tinham ficado em sua lembrança
os relatos que ouvia quando criança. Guardara a imagem de alguém muito direito,
com valores tradicionais, especialmente o gosto pelo trabalho e o apego à
honestidade. Através de tal ato falho, Gilles deu-me a impressão que tentava
encontrar outra referência masculina próxima, que lhe oferecesse uma
possibilidade identitária mais protetora ou, ao menos, que não o colocasse em
risco. Descobre então que seu avô materno podia incorporar uma figura que
funcionasse no seu imaginário como uma ascendência de identificação diferente
de seu próprio genitor, uma referência tutelar que o protegesse da destruição
de seu pai e da sua própria. Esse momento da terapia e todo o trabalho
realizado em torno dos nomes tiveram um efeito de mutação em Gilles.
Paulatinamente,
conseguiu resolver sua situação legal e comercial. Pagou as dívidas que tinham
motivado sua interdição e pôde finalmente se converter legalmente em sócio da
empresa. Já não necessitava que outro o representasse, que seu próprio nome
desaparecesse por trás do nome de outro. Seu lapso dos nomes familiares, a
irrefreável corrida em uma letal identificação com um genitor biológico, que
nunca assumira uma verdadeira função paterna, foram muito elucidadoras daquilo
que se jogava em sua própria dinâmica psíquica ao longo de sua psicoterapia.
No momento em que
entrevê outra possibilidade de identificação masculina, que não a de se parecer
com seu genitor, toma consciência de sua qualidade de órfão simbólico e da
necessidade de passar pelo luto de um pai. Consegue se desidentificar de um
genitor mortífero e fazer o luto pelo pai a quem, finalmente, nunca tinha
encontrado. O genitor biológico não tinha lhe oferecido uma função paterna, mas
tão só um simulacro. A transmutação dos nomes que Gilles realiza de maneira
inconsciente foi reveladora de seu desejo de se desidentificar de um genitor
destrutivo em essência. Através do vínculo transferencial, descobre outros
modelos possíveis de identificação masculina. O ato falho referente ao seu
nome, na ocasião de incluí-lo no formulário de renovação de seu falido
documento de identificação, no qual revela seu desejo de se chamar como seu
progenitor materno, se inscreve num movimento de identificação masculina em
harmonia com o respeito à lei. Antes de mais nada, no entanto, tratava-se de
seu desejo de integrar uma lei simbólica, fonte de interdição e, por sua vez,
habilitação de sua identidade masculina. Dito de outro modo, vestir novas
roupas de homem, outros envoltórios possíveis para sua vacilante identidade,
materializados no fato de que as roupas para homens que vende levam inscritas
seu próprio nome, incluído na assinatura que as comercializa. Ou seja, que sua assinatura
se inscreve numa vestimenta masculina, que ele pode habitar sem se destruir.
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Endereço para correspondência
Juan Eduardo Tesone
Teodoro García, 2.475/3º B
1.426 Ciudad de Buenos Aires, Argentina
Juan Eduardo Tesone
Teodoro García, 2.475/3º B
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