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Retirado de
Cada indivíduo recebe
um nome algumas semanas após o nascimento, e o portará até que lhe nasça o
primeiro filho. Esta regra é obrigatória para as mulheres. Os homens podem
passar a ser denominados como "X-pihã", "companheiro de X (nome
da esposa)", assim que se casam. Quando nasce o primeiro filho ou filha, o
casal abandona definitivamente seus nomes de infância e assume outros que fazem
referência ao nome da criança: "Y-ro" e "Y-hi", "pai"
e "mãe" de y (nome da criança). Assim, por exemplo, o jovem Ñapiri
casou-se com a moça Kãñî -ti; esta continou a ser chamada de Kãñîti, ele passou
a ser conhecido como Kãñî-ti-pihã. Nasceu-lhes um menino, que recebeu o nome de
Karamirã. O casal passou então a ser chamado de Karamirã-no e Karamirã-hi; seus
nomes de infância não podem mais ser pronunciados por quem quer que seja.
Depois que nasceu seu segundo filho, a menina Kãñî-paka, os dois podem ser
ocasionalmente chamados de Kãñî-paka-ro e Kãñî-paka-hi; mas em geral os pais
tendem a ser conhecidos pelo nome do primogênito, mesmo se ele veio a morrer
ainda muito pequeno.
O primeiro filho é
nomeado mais rapidamente que os filhos subseqüentes; a escolha de seu nome é
objeto de maiores cuidados, e sempre pensa-se no nome que os pais terão, ao
nomear-se a criança. De certa forma, o que se está realmente nomeando são os
pais: os tecnônimos (termo que designa esses tipos de nomes pessoais que se
referem ao parentesco de ego com outrem) são considerados nomes mais 'próprios'
que os nomes de infância. Uma vez obtidos tais tecnônimos que marcam o status
de adulto (para os Araweté, ser adulto é ter filhos), os nomes de infância
tornam-se "dolorosos de ouvir". Curiosamente, entretanto, esses nomes
podem continuar a ser pronunciados, quando estão embutidos nos tecnônimos dos
pais: assim, por exemplo, Tapaia-hi é o nome corrente da mãe de Iapï'ï-do, um
homem cujo nome de infância foi Tapaia (jamais pronunciado em sua presença, e
talvez desconhecido de todas as pessoas das gerações mais jovens).
A nominação das
crianças não é objeto de nenhuma cerimônia especial, e não há, como em muitas
outras sociedades indígenas, nominadores pré-determinados por parentesco. A
maioria dos nominadores das crianças são pessoas maduras, em geral parentes
próximos de um dos pais. O pai e a mãe podem escolher por sua própria conta os
nomes de seus filhos, mas isso é muito raro no caso do primogênito: ainda
jovens, os pais curvam-se à opinião dos mais velhos, e especialmente dos
próprios pais. Só há uma regra que deve ser respeitada na escolha do nome: não
pode haver duas pessoas vivas com o mesmo nome. Isso se aplica ao nomes de
infância dos adultos, que mesmo abandonados por eles não podem ser conferidos a
crianças. Um nome precisa ser, ou novo, ou de alguém que já morreu.
A onomástica araweté
depende de três critérios. Uma criança pode ser nomeada "conforme um morto
do grupo" (pirowi'hã ne), "conforme uma divindade" (Maï de), ou
"conforme um inimigo" (awî ne). Esses três critérios de nominação não
devem ser confundidos com as classes a que remetem os nomes. Isso é importante
porque a maioria dos nomes araweté são "nomes de deuses" ou
"nomes de inimigos", mas podem ter sido conferidos "conforme um
morto", isto é, a intenção da nominação foi repor em circulação o nome (de
origem divina ou inimiga) de um parente morto.
Alguns dos nomes
conferidos "conforme um morto" são intraduzíveis; mas muitos têm
significado: nomes de ancestrais míticos, de animais (pássaros, quase sempre),
de plantas, de objetos, verbos, qualidades... A maior parte dos nomes, porém,
são classificados como "nomes de inimigos" ou "nomes de
divindades".
O processo de
reposição onomástica efetuado pela nominação "conforme um morto"
manifesta uma intenção afetiva e comemorativa. Não se concebe nenhuma
reencarnação de almas via os nomes, nem se transmitem as relações de parentesco
do antigo portador do nome para a criança nominada (como ocorre em outros
grupos indígenas). Um nominador de uma criança escolhe nomes de pessoas que são
caras a si mesmo ou aos pais do bebê. Pode haver mais de um morto que portou
aquele nome, mas a escolha é feita tendo-se em mente uma pessoa em particular.
O que se repõe, ao dar-se um nome de alguém morto a um bebê, é uma tríade, a
criança e seus pais. Muitas vezes, o que se visa particularmente é que voltem a
existir os X-ro e X-hi, mortos mais presentes na memória do grupo que o X, que
pode ser uma criança falecida ainda pequena. Esse critério de nominação é o
mais freqüentemente usado para a escolha do nome dos primogênitos, e são as
mulheres mais velhas ou os homens enquanto chefes de grupos domésticos (pais e
sogros dos pais da criança) que o acionam preferencialmente.
Os nomes dados
"conforme um inimigo" também têm significados variados, mas são quase
sempre "nomes de inimigos": nomes pessoais ou tribais de inimigos
míticos ou históricos (muitos trazidos por mulheres que estiveram cativas entre
os Kayapó), palavras estrangeiras que os Araweté sabem nada terem a ver com
nomes pessoais, metáforas e frases tiradas dos cantos que comemoram a morte de
inimigos na guerra… Aqui se incluem vários nomes e expressões em português
(recordemos que os kamarã são classificados como um tipo especial de awî,
inimigo). A nominação "conforme um inimigo" é mais freqüentemente
acionada pelos homens na qualidade de guerreiros. Em geral, após um combate com
os inimigos, os homens que se distinguiram na guerra sonham com os inimigos
mortos a lhes revelarem nomes, utilizados então para nomear os recém-nascidos.
Os nomes dados
"conforme uma divindade" refletem o variado panteão araweté.
Praticamente todos os nomes de deuses celestes e subterrâneos se encontram como
nomes pessoais. Não se usam porém os nomes dos espíritos terrestres, malignos.
Os nomes "conforme uma divindade" são conferidos por homens maduros
em sua qualidade de pajés. Todos os tipos de nome, e critérios de nominação,
podem ter origem em visões dos pajés, que sonham e cantam à noite, extraindo
destes sonhos e cantos nomes novos ou antigos. Mas os nomes "conforme uma
divindade" são invariavelmente conferidos por pajés.
Após a morte, uma
pessoa é mencionada por seu nome seguido do sufixo -reme, "finado".
Nos cantos dos pajés que trazem as almas celestes dos mortos à terra, estas são
nomeadas sem este sufixo de "finado", que conota ausência ou
distância. Os nomes de infância dos mortos são livremente mencionados, longe
dos ouvidos de seus parentes próximos.
Ao contrário de
outras sociedades indígenas brasileiras, onde os nomes marcam posições sociais
e papéis cerimoniais, chegando quase a ter a função de títulos, entre os
Araweté os nomes são ao mesmo tempo invidualizantes - ninguém pode trazer o
mesmo nome que outra pessoa viva, e muitas são as pessoas com nomes que não
foram usados por ninguém no passado - e curiosamente 'impessoais' e
relacionais. Note-se que o nome mais 'próprio' de uma pessoa, seu nome de
adulto, é um tecnônimo, isto é, um nome que designa a relação de paternidade
que a pessoa tem com outra. A impressão que me fica é que os Araweté dão nomes
às crianças para poderem chamar os pais delas pelos tecnônimos… De outro lado,
a onomástica araweté recorre ao que poderíamos chamar de exterior da sociedade
para obter os nomes: pois os mortos, os inimigos e as divindades representam,
sob diferentes aspectos, aquilo que não pertence ao mundo dos viventes araweté,
o mundo propriamente humano. Deuses, mortos e inimigos ocupam o espaço exterior
do cosmos araweté - é de lá que vêm os nomes. A identidade de cada araweté,
assim, é determinada pelo exterior da pessoa de múltiplas maneiras: os nomes de
infância evocam o exterior da sociedade; os tecnônimos dos adultos referem-se à
relação da pessoa com outra.
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