domingo, 24 de janeiro de 2016

Os nomes entre o povo indígena Arawete

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Retirado de


Cada indivíduo recebe um nome algumas semanas após o nascimento, e o portará até que lhe nasça o primeiro filho. Esta regra é obrigatória para as mulheres. Os homens podem passar a ser denominados como "X-pihã", "companheiro de X (nome da esposa)", assim que se casam. Quando nasce o primeiro filho ou filha, o casal abandona definitivamente seus nomes de infância e assume outros que fazem referência ao nome da criança: "Y-ro" e "Y-hi", "pai" e "mãe" de y (nome da criança). Assim, por exemplo, o jovem Ñapiri casou-se com a moça Kãñî -ti; esta continou a ser chamada de Kãñîti, ele passou a ser conhecido como Kãñî-ti-pihã. Nasceu-lhes um menino, que recebeu o nome de Karamirã. O casal passou então a ser chamado de Karamirã-no e Karamirã-hi; seus nomes de infância não podem mais ser pronunciados por quem quer que seja. Depois que nasceu seu segundo filho, a menina Kãñî-paka, os dois podem ser ocasionalmente chamados de Kãñî-paka-ro e Kãñî-paka-hi; mas em geral os pais tendem a ser conhecidos pelo nome do primogênito, mesmo se ele veio a morrer ainda muito pequeno.

O primeiro filho é nomeado mais rapidamente que os filhos subseqüentes; a escolha de seu nome é objeto de maiores cuidados, e sempre pensa-se no nome que os pais terão, ao nomear-se a criança. De certa forma, o que se está realmente nomeando são os pais: os tecnônimos (termo que designa esses tipos de nomes pessoais que se referem ao parentesco de ego com outrem) são considerados nomes mais 'próprios' que os nomes de infância. Uma vez obtidos tais tecnônimos que marcam o status de adulto (para os Araweté, ser adulto é ter filhos), os nomes de infância tornam-se "dolorosos de ouvir". Curiosamente, entretanto, esses nomes podem continuar a ser pronunciados, quando estão embutidos nos tecnônimos dos pais: assim, por exemplo, Tapaia-hi é o nome corrente da mãe de Iapï'ï-do, um homem cujo nome de infância foi Tapaia (jamais pronunciado em sua presença, e talvez desconhecido de todas as pessoas das gerações mais jovens).

A nominação das crianças não é objeto de nenhuma cerimônia especial, e não há, como em muitas outras sociedades indígenas, nominadores pré-determinados por parentesco. A maioria dos nominadores das crianças são pessoas maduras, em geral parentes próximos de um dos pais. O pai e a mãe podem escolher por sua própria conta os nomes de seus filhos, mas isso é muito raro no caso do primogênito: ainda jovens, os pais curvam-se à opinião dos mais velhos, e especialmente dos próprios pais. Só há uma regra que deve ser respeitada na escolha do nome: não pode haver duas pessoas vivas com o mesmo nome. Isso se aplica ao nomes de infância dos adultos, que mesmo abandonados por eles não podem ser conferidos a crianças. Um nome precisa ser, ou novo, ou de alguém que já morreu.

A onomástica araweté depende de três critérios. Uma criança pode ser nomeada "conforme um morto do grupo" (pirowi'hã ne), "conforme uma divindade" (Maï de), ou "conforme um inimigo" (awî ne). Esses três critérios de nominação não devem ser confundidos com as classes a que remetem os nomes. Isso é importante porque a maioria dos nomes araweté são "nomes de deuses" ou "nomes de inimigos", mas podem ter sido conferidos "conforme um morto", isto é, a intenção da nominação foi repor em circulação o nome (de origem divina ou inimiga) de um parente morto.

Alguns dos nomes conferidos "conforme um morto" são intraduzíveis; mas muitos têm significado: nomes de ancestrais míticos, de animais (pássaros, quase sempre), de plantas, de objetos, verbos, qualidades... A maior parte dos nomes, porém, são classificados como "nomes de inimigos" ou "nomes de divindades".

O processo de reposição onomástica efetuado pela nominação "conforme um morto" manifesta uma intenção afetiva e comemorativa. Não se concebe nenhuma reencarnação de almas via os nomes, nem se transmitem as relações de parentesco do antigo portador do nome para a criança nominada (como ocorre em outros grupos indígenas). Um nominador de uma criança escolhe nomes de pessoas que são caras a si mesmo ou aos pais do bebê. Pode haver mais de um morto que portou aquele nome, mas a escolha é feita tendo-se em mente uma pessoa em particular. O que se repõe, ao dar-se um nome de alguém morto a um bebê, é uma tríade, a criança e seus pais. Muitas vezes, o que se visa particularmente é que voltem a existir os X-ro e X-hi, mortos mais presentes na memória do grupo que o X, que pode ser uma criança falecida ainda pequena. Esse critério de nominação é o mais freqüentemente usado para a escolha do nome dos primogênitos, e são as mulheres mais velhas ou os homens enquanto chefes de grupos domésticos (pais e sogros dos pais da criança) que o acionam preferencialmente.

Os nomes dados "conforme um inimigo" também têm significados variados, mas são quase sempre "nomes de inimigos": nomes pessoais ou tribais de inimigos míticos ou históricos (muitos trazidos por mulheres que estiveram cativas entre os Kayapó), palavras estrangeiras que os Araweté sabem nada terem a ver com nomes pessoais, metáforas e frases tiradas dos cantos que comemoram a morte de inimigos na guerra… Aqui se incluem vários nomes e expressões em português (recordemos que os kamarã são classificados como um tipo especial de awî, inimigo). A nominação "conforme um inimigo" é mais freqüentemente acionada pelos homens na qualidade de guerreiros. Em geral, após um combate com os inimigos, os homens que se distinguiram na guerra sonham com os inimigos mortos a lhes revelarem nomes, utilizados então para nomear os recém-nascidos.

Os nomes dados "conforme uma divindade" refletem o variado panteão araweté. Praticamente todos os nomes de deuses celestes e subterrâneos se encontram como nomes pessoais. Não se usam porém os nomes dos espíritos terrestres, malignos. Os nomes "conforme uma divindade" são conferidos por homens maduros em sua qualidade de pajés. Todos os tipos de nome, e critérios de nominação, podem ter origem em visões dos pajés, que sonham e cantam à noite, extraindo destes sonhos e cantos nomes novos ou antigos. Mas os nomes "conforme uma divindade" são invariavelmente conferidos por pajés.

Após a morte, uma pessoa é mencionada por seu nome seguido do sufixo -reme, "finado". Nos cantos dos pajés que trazem as almas celestes dos mortos à terra, estas são nomeadas sem este sufixo de "finado", que conota ausência ou distância. Os nomes de infância dos mortos são livremente mencionados, longe dos ouvidos de seus parentes próximos.


Ao contrário de outras sociedades indígenas brasileiras, onde os nomes marcam posições sociais e papéis cerimoniais, chegando quase a ter a função de títulos, entre os Araweté os nomes são ao mesmo tempo invidualizantes - ninguém pode trazer o mesmo nome que outra pessoa viva, e muitas são as pessoas com nomes que não foram usados por ninguém no passado - e curiosamente 'impessoais' e relacionais. Note-se que o nome mais 'próprio' de uma pessoa, seu nome de adulto, é um tecnônimo, isto é, um nome que designa a relação de paternidade que a pessoa tem com outra. A impressão que me fica é que os Araweté dão nomes às crianças para poderem chamar os pais delas pelos tecnônimos… De outro lado, a onomástica araweté recorre ao que poderíamos chamar de exterior da sociedade para obter os nomes: pois os mortos, os inimigos e as divindades representam, sob diferentes aspectos, aquilo que não pertence ao mundo dos viventes araweté, o mundo propriamente humano. Deuses, mortos e inimigos ocupam o espaço exterior do cosmos araweté - é de lá que vêm os nomes. A identidade de cada araweté, assim, é determinada pelo exterior da pessoa de múltiplas maneiras: os nomes de infância evocam o exterior da sociedade; os tecnônimos dos adultos referem-se à relação da pessoa com outra.





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